As possíveis origens das manifestações sobrenaturais.
A visão bíblico-cristã da realidade espiritual nos coloca perante quatro níveis de existência racional (qualitativamente falando):
(1) Deus,
(2) anjos e demônios (os demônios têm em Satanás o seu líder),
(3) o espírito dos seres humanos mortos, salvos e perdidos e
(4) os seres humanos vivos - crentes e descrentes.
Do ponto de vista moral, esta visão bíblico-cristã tem uma divisão, apenas: de um lado, o do bem e da justiça, estão Deus, os anjos, os espíritos dos mortos em Cristo e os discípulos vivos de Cristo; do outro lado, o do mal, estão Satanás e as hostes dos demônios, os espíritos dos mortos sem Cristo e os espíritos dos vivos que persistem no estado de rebelião contra Deus e sua revelação na natureza, em Cristo e na Bíblia. [1] A fonte final de todo o mal é Satanás (Ap 12.9). Na visão cristã da realidade não existe razão a priori que impeça que os espíritos do mal contatem e influenciem a vida na terra. Não existe impossibilidade lógica nem empírica.
Deus, sendo o soberano criador do universo, tem toda a liberdade para interferir sobrenaturalmente em a sua criação e isso ele o faz. Mas ele próprio nos informa que existiram, existem e existirão fenômenos inexplicáveis que não são o fruto direto de suas ações. Isto significa que mesmo que estejam abrigados no seu governo maior, mesmo que integrem o seu
Na realidade, Satanás e as hostes das trevas são responsáveis diretos por muitos dos fenômenos inexplicáveis. Coerentes com os seus propósitos e com as suas naturezas, eles utilizam estes fenômenos para enganar os homens e para imprimir autoridade aos seus emissários. Ao examinarmos esses aspectos dos fenômenos, somos atingidos por muitas perguntas sobre Satanás, sobre o mal e sobre os seus espíritos.
A doutrina dos demônios ou dos espíritos do mal é amplamente ensinada na Palavra de Deus. Existe, entretanto, um elevado grau de obscuridade nos fatos registrados. Além da linguagem alegórica e do seu íntimo entrelaçamento com situações históricas, [2] saímos de qualquer estudo sério com a impressão de que Deus decidiu não nos revelar, nem as respostas da origem do mal nem extensos detalhes do modus operandi do demônio e de seus anjos.
O testemunho bíblico sobre as ações de Satanás, ao mesmo tempo em que estabelece a sua realidade e caráter antagônico à justiça de Deus, é fragmentado e, com freqüência, apresentado de forma abrupta, sem intróitos ou considerações explicativas. Esta constatação é evidente desde a leitura das primeiras páginas da Bíblia. Ali encontramos um casal criado por Deus, vivendo em perfeita paz, inocência e harmonia. Estas características descrevem também todo o meio ambiente em que vivem. Repentinamente, um adversário aparece nesta cena e, imediatamente, acontece uma rápida transformação: toda aquela atmosfera paradisíaca dá lugar ao pecado, à maldição e ao caos. Imediatamente perguntamos: “De onde veio Satanás?” Mesmo a resposta dada por ele a Deus, no caso de Jó (Jó 2.2), não nos concede qualquer informação tangível. Verificamos, na realidade, que estamos lidando com um dos mais profundos mistérios do universo! [3]
Esta percepção deveria já servir de alerta aos autores dos inúmeros tratados sobre demonologia que têm surgido no campo evangélico apresentando detalhamentos, definições e conclusões que são estranhas à Bíblia. Na ânsia de explicar pontos obscuros do mistério, estes livros extrapolam o campo legítimo de pesquisa, que é a Palavra revelada e escriturada de Deus, e passam a especulações inócuas que confundem os crentes sinceros. Muitas vezes conclusões e declarações são feitas que abertamente contradizem passagens bíblicas e, na melhor das hipóteses, os fiéis são levados a desviar o foco prioritário de suas atenções, com um mórbido interesse pelo bizarro e na desenfreada busca pelo oculto. Essa situação é muito mais característica das religiões pagãs do que da fé cristã histórica.
A ausência de uma revelação mais extensa e detalhada não significa, entretanto, que fomos deixados sem rumo num mundo que é caracterizado
(1) Satanás é real (2 Co 11.3; 2 Tm 2.26).
(2) Satanás interage com as pessoas (Gn 3.1-15) e com o próprio Deus (Jó 1.6-12).
(3) Satanás possui anjos caídos que constituem o seu séquito maligno, emissários da morte e do engano, para corromper os homens (1 Tm 4.11).
(4) A rebelião satânica contra Deus teve o seu ápice na primeira vinda de Cristo, quando ele tentou frustrar o
(5) Satanás tem poder de realizar maravilhas (2 Co 11.14-15).
(6) O poder de Satanás é restringido pelo Espírito Santo, por amor dos eleitos e pelo exercício da Graça Comum, que abrange a todas as criaturas. Deus permitirá uma última rebelião, antes da 2ª vinda de Cristo, que será quando “aquele que o detêm” (2 Ts 2.11) deixar que Satanás exteriorize todo o seu mal
(7) Apesar de limitado e passível de ser resistido pelos crentes, (Tg 4.7) Satanás não deve ser considerado com desprezo (Jd 8-10), mas deve ser respeitado
(8) A derrota de Satanás será pública, notória e final (Ap 12.9; 20.10).
O dever bíblico da Igreja de procurar discernir os espíritos
Considerando que a simples constatação de um fenômeno não é prova da presença e aprovação de Deus na vida dos realizadores ou recebedores, somos conscientizados, pela Palavra de Deus, de que é necessário exercer julgamento, examinar essas coisas com muito mais profundidade e termos discernimento quanto aos fenômenos e quanto aos operadores de maravilhas.
O Dom de Discernimento
Encontramos menção deste dom em 1 Co 12.10. Nos versos
Alguns autores apresentam uma mensagem confusa a esse respeito, pois por um lado chamam este “discernimento” de “dom especial”, mas por outro lado, afirmam que este dom está “à disposição dos verdadeiros discípulos de Jesus”. [4] Acreditamos que, sendo um dom específico, esta habilidade estaria presente de uma forma toda especial em algumas pessoas apenas. Se essa interpretação é certa, não seria correto esperarmos que todos os crentes possuíssem a capacidade de discernimento aqui apresentada.
Mas o que significa ser ele um dom especial? Será que o crente comum não tem a possibilidade de discernir, de avaliar a procedência de um fenômeno, de julgar o realizador? Será que vamos depender de uma casta espiritual, possuidora do dom de discernir que venha a dar o rumo normativo à igreja nessas questões?
Genericamente temos três palavras gregas (e suas derivadas) que são traduzidas
Existe um outro termo, que é o utilizado por Paulo em 1 Co 12.10. Este, além de estar substantivado (discernimento, em vez de discernir) e apesar de ser relacionado com diakrinô, é diferente. Trata-se de diakrisis - a conjunção de uma preposição (diá, que significa através de, por intermédio de) com a palavra krisis (de onde vem a nossa palavra crise). Krisis é traduzida
Neste sentido, o dom, do qual fala Paulo em 1 Co 12.10, parece ser mesmo algo especial. Não apenas representa discernimento, no sentido de se aferir se um espírito é bom ou mal, mas a autoridade e capacidade de pronunciar um julgamento de condenação sobre o mesmo. Pedro aparenta exercitar este dom e prerrogativa em duas situações, no caso de Ananias e Safira (At 5) e no caso de Simão, o mago (At 8). [6] Neste último caso, além de aferir a oferta de dinheiro e as palavras de Simão (”…dai-me também a mim esse poder, para que aquele sobre quem eu impuser as mãos, receba o Espírito Santo”), Pedro discerne as intenções e o que está no coração (”…o teu coração não é reto diante de Deus… vejo que estás em fel de amargura, e em laços de iniquidade.”). Ele vai, portanto, além e pronuncia uma maldição,
Assim, o discernimento de espíritos, no sentido de pronunciar julgamento de condenação, sendo um dom específico não parece ser uma habilidade uniformemente distribuída a todos os crentes. Mas a questão do discernimento dos espíritos dentro da Igreja e, especialmente, a necessidade deste discernimento em função das ações dos espíritos malignos ocorre em várias outras passagens. Isso mostra que, no sentido de prontidão e alerta, o crente é comissionado a examinar todas as coisas e reter o bem (1 Ts 5.21). Assim deve ser com os fenômenos, aferindo estes por determinados padrões traçados na Palavra de Deus.
Mesmo neste trecho de 1 Co 12, falando do dom especial, Paulo já fornece um critério básico para o discernimento genérico, que deve estar presente na vida dos fiéis: “…ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma: Anátema Jesus! Por outro lado, ninguém pode dizer: Senhor Jesus! senão pelo Espírito Santo” (v. 3). Isso significa que onde estiver a rejeição aberta ou a blasfêmia contra Jesus, não pode haver o verdadeiro Espírito de Deus, mesmo que haja uma pretensa exaltação a uma divindade. Por outro lado a verdadeira confissão seria indicadora da existência do verdadeiro Espírito de Deus. Por confissão, Paulo não deve estar sugerindo a simples profissão externa, ou a utilização irracional de chavões evangélicos, ou até do nome de Jesus, utilizado
Provai os Espíritos
Na primeira carta de João (4.1-4) temos a seguinte admoestação:
Amados, não deis crédito a qualquer espírito: antes provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo a fora.
Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; E todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anti-cristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem, e presentemente já está no mundo.
Filhinhos, vós sois de Deus e tendes vencido os falsos profetas, porque maior é aquele que está em vós do que aquele que está no mundo. Eles procedem do mundo; por essa razão falam da parte do mundo, e o mundo os ouve.
Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus nos ouve; aquele que não é da parte de Deus não nos ouve. Nisso reconhecemos o espírito da verdade e o espírito do erro.
Temos aqui um critério adicional para o discernimento dos espíritos-nos versos 2 e 3 somos comissionados a provar (dokimazô) [8] os espíritos. Aquele que reconhece a realidade de Jesus (Confessar que Jesus Cristo veio em carne) é identificado
(1) Eles procedem do mundo (mundo, aqui, já foi identificado no v. 3, como sendo o espírito do anticristo, ou seja, a estrutura antagônica às coisas e ao ensinamento de Jesus-a esfera de pensamento que se encontra sob a égide de Satanás).
(2) Eles falam da parte do mundo e
(3) o mundo os ouve.
A questão da resposta à mensagem passa a ser um critério de discernimento: a resposta positiva à pregação da sã doutrina (”aquele que conhece a Deus nos ouve”) é uma demonstração em si de que o ouvinte atento e sincero é participante do Espírito da Verdade e não do espírito do erro. Vejamos em outras passagens as características e a operação desses espíritos de erro:
1 Tm 4.1 diz- “Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos de demônios.” A característica desses espíritos enganadores e demônios é que eles “falam mentiras” (v.2). Em Seus insondáveis propósitos Deus permite a ação desses espíritos enganadores por várias razões, mas uma delas é retratada em 2 Ts 2.11 -”…Deus lhes manda a operação do erro, para darem crédito à mentira…”. Este verso fala de
Em 2 Co 11.3 e 4, Paulo nos alerta para o fato de que se nos apartarmos da “pureza e simplicidade” devidas a Cristo (v. 3), ele receia que:
- iremos receber alguém que prega um outro Jesus, diferente do que ele mesmo pregou;
- chegaremos a aceitar um espírito diferente daquele que havia sido recebido e
- poderemos abraçar um evangelho diferente do que havia sido anteriormente ministrado (v. 4);
Nos versículos 14 e 15, ele avisa que isso “não é de admirar: porque o próprio Satanás se transforma em anjo de luz” (v. 14). Esta atuação não está restrita a Satanás. Os seus ministros também se travestem em “ministros de justiça” (v. 15). Só podemos entender que essa impressão é passada aos incautos em função de uma mensagem e prática cheia de enganos e mentiras.
Ap 12.9 chama Satanás de “sedutor de todo o mundo”. O trecho é uma clara referência à operação de mentiras que caracteriza as suas ações. Este mesmo verso indica o fim e a derrota final dele e dos seus anjos.
(trecho de capítulo publicado
[1] Gordon L. Lewis, Criteria for Discerning Spirits,
[2] Por exemplo, os relatos normalmente atribuídos à uma descrição da personalidade, pecado e queda de Satanás estão intrinsecamente ligados aos detalhes históricos da prosperidade, orgulho e queda do rei de Tiro e ao julgamento contra a Babilônia (Ez 28.1-19; Is 14.12-20). A abstração daquilo que é considerado a mensagem real, desses detalhes históricos, nem sempre é clara ou substanciada por uma hermenêutica sadia.
[3] Mesmo autores que têm escrito extensivamente sobre a questão dos Demônios e Anjos, quando abordam a questão com isenção e honestidade acadêmica, têm chegado a esta conclusão como, por exemplo, Mrs. Geo. C. Needham, Angels and Demons (Chicago: Moody Press, sd) pp. 48-49.
[4] R. R. Soares, Espiritismo - A Magia do Engano (RJ: Graça Editorial, 1984) p. 93.
[5] W. F. Arndt e F. W. Gingrich, A Greek-English Lexiconof the New Testament (Chicago: University of Chicago Press, 1957-69) p. 453.
[6] Note que mesmo antes de entrar em contato com a pregação do Evangelho, At 8.9-10 registra que “…Simão, o mago, vinha exercendo naquela cidade a arte mágica, fazendo pasmar o povo da Samaria, e dizendo ser ele uma grande personagem; ao qual todos atendiam, desde o menor até o maior, dizendo: Este é o Poder de Deus que se chama Grande”. A operação de maravilhas havia levado o povo a creditar tais coisas ao poder de Deus, quando o desenrolar da história mostra o contrário.
[7] Diakrisis aparece somente em duas outras instâncias, no NT: Hb 5.14, onde é traduzida como discernir, mas enfatizando o discernimento do mal (o discernimento do bem parece ser a expectativa normal para o cristão) e Rm 14.1, onde é traduzida como discutir opiniões (no contexto significa não apenas o diálogo inocente de idéias, mas pronunciar julgamento contrário nas atitudes do irmão mais fraco na fé).
[8] Conforme indicamos anteriormente, a palavra dokimazô expressa teste empírico, experimental. É a palavra utilizada para identificar o teste a que eram submetidos os metais, pelo fogo, para provar ou descaracterizar a sua nobreza (Pv 8.10-na Septuaginta-ouro escolhido, ouro provado; 1 Pe 1.7).